Resenha Crítica: “O Espelho” — conto de Machado de Assis (1882)

“O Espelho — Esboço de uma Nova Teoria da Alma Humana” de Machado de Assis, escrito em 1882, é parte integrante da obra Papéis Avulsos, o terceiro livro de contos escritos pelo autor.

Daniel V Gasparino
4 min readJan 3, 2023

O conto se inicia tratando de “Quatro ou cinco cavalheiros” que debatiam questões físicas, metafísicas e transcendentais, até chegarem ao assunto sobre a natureza da alma. O texto conta que, dentre esses homens, havia um — o único que o escritor revela o nome — que se destacava por estar geralmente calado e reservado, se dispondo de não participar das discussões que os envolvia. Quando perguntam sua opinião a respeito da alma humana, Jacobina pondera sua decisão de não argumentar com ninguém, mas sim, afirmar sua posição enquanto os homens o ouviam. Então ele pondera, sem aceitar contra argumentações, que existem duas almas.

A partir dessa afirmação, sem que fosse replicado, Jacobina inicia uma explicação sobre a alma, dando exemplos como a da laranja: “o homem […] metafisicamente falando, [é] uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência”. Afirmando que existe a alma interior e a alma exterior, a segunda podendo ser reconhecida em qualquer coisa material, que transmite a vida, assim como a alma interior o faz, completando quem o homem é.

A alma exterior também pode ser mutável conforme o tempo, mudando tanto sua natureza quanto seu estado. A alma exterior de César era seu poder, a de Camões era a pátria — essas chamadas de almas absorventes (enérgicas) — e sendo assim, quando tal alma deixasse de existir, o indivíduo poderia até morrer com ela.

A discussão que o autor faz através do personagem leva à uma narrativa que esboça o novo conceito de alma. Jacobina é deixado sozinho por seus familiares, e após alguns dias de aflição e angústia, descrito como um sentimento diferente do medo comum, se observa num espelho que ganhara de presente após ser nomeado alferes (uma patente oficial abaixo do tenente) e vê uma imagem:

Não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa sombra de sombra.

Ele narra que a partir disso teve a ideia de vestir a roupa de alferes com que havia sido nomeado. Ele veste a roupa e então o espelho reproduz a imagem exata de si mesmo. A discussão implicava em duas almas: a interior, representada por Jacobina se olhando no espelho e enxergado linhas difusas, nada aparente de realidade, uma abstração, um esboço. E a alma exterior, representada pelo Jacobina alferes, esse bem representado no espelho, se enxergando nitidamente e conseguindo passar os dias de solidão com o conforto de dois: ele mesmo e sua imagem no espelho.

De maneira profundamente filosófica e existencial, Machado de Assis propõe uma nova discussão sobre a alma, fazendo-se valer de um olhar social que valida a experiência da alma exterior e que, sem isso, o indivíduo se desintegraria.

Alfredo Bosi disserta sobre o conto no ensaio “O duplo espelho em um conto de Machado de Assis (2014)” sobre como a experiência social do olhar do outro sobre o indivíduo completa sua própria identidade. O indivíduo é um ser social, e imprime em si mesmo o olhar que recebe exteriormente, de outras pessoas, amigos e familiares, condicionado a receber determinado status. No conto, Jacobina recebe o status de alferes, e é contemplado pelas pessoas ao seu redor com elogios, promoções e honrarias que normalmente não receberia. Ele, então, é suprimido pela sua alma exterior ao ponto de afirmar “o alferes exclui o homem”. Sua identidade se integra e desintegra, a partir de todo processo de afastamento das pessoas que imprimiam a personalidade do Jacobina alferes. Tia Marcolina e o cunhado viajam para visitar a filha doente, e os escravos vendo a casa sozinha fogem logo em seguida, iniciando um processo de perca da identidade que constituía o personagem.

Para o personagem existe a “necessidade de parecer, pois o que vale é ser-para-o-outro” (BOSI, 2014). A segunda metade do texto, pela visão do narrador-personagem, explicita a função de um ser que só é completo no outro e, por isso, quando ausente deste, sofre e perde sua própria essência de identidade. Machado escreve com uma visão dupla em primeira e terceira pessoa. O texto percorre um modelo de forma existencial e filosófica, pois abstrai da personalidade humana a função de duas almas e versa sobre a identidade de fora pra dentro, da alma exterior criada a partir de coisas, objetos, lugares, pessoas, seres e afins.

“Não sei quantas almas tenho/ Cada momento mudei/ Continuamente me estranho/ Nunca me vi nem acabei.” [Fernando Pessoa, 1937]

Fernando Pessoa, com suas diversas personalidades em pseudônimos, apresenta uma suposta dúvida da quantidade de almas que o compõem. Essa perca da identidade pode se relacionar com o conto, de maneira que o próprio Jacobina também se torna alheio à sua identidade (alma) interior. O que existe somente é o que olhar social diz, e os objetos construídos ao redor dessa situação.

O texto, em sua maneira dialética de percorrer o assunto sobre a alma, concluí a ideia central formando no narrador-protagonista a identidade fomentada exteriormente como alferes, Jacobina. Ele, em si mesmo, se vê no espelho somente o que quer mostrar às outras pessoas, e quando tenta se observar sem a modalidade da alma exterior, se perde no que vê e não enxerga nada real, somente imagens difusas da sua alma interior que se perde na existência do ser social (alferes).

Dessa forma, o conto esboça uma “nova teoria da alma humana”, percorrendo de maneira existencial, filosófica e sociológica a formação do ser. O indivíduo, nada mais é, do que aquilo que fazem de si.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. O Espelho — Esboço de uma Nova Teoria da Alma Humana. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.

Bosi, A. (2014). O duplo espelho em um conto de Machado de Assis. Estudos Avançados, 28(80), 237–246. Recuperado de https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/79696

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).

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